O fato de um fundo de investimento privado não possuir personalidade jurídica não impede, por si só, que ele sofra os efeitos da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica em caso de comprovado abuso de direito.
Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso especial ajuizado por um fundo de investimento que foi alvo de bloqueio de valores em conta bancária de sua titularidade.
O caso trata do Pinheiros Fundo de Investimento em Participações, criado pela empresa Bracol Holding Ltda., que pertence à família Bertin. Inicialmente, tinha a forma de condomínio fechado. Ou seja, as quotas não estavam à disposição para livre compra no mercado e havia apenas uma cotista.
A partir de 2009, a empresa passou a transferir a maior parte de suas quotas para a empresa Blessed Holding LLC, que tem sede nos Estados Unidos. Essas transferências foram feitas por valores considerados irrisórios.
Em uma das movimentações, em novembro de 2010, a Bracol transferiu 21,5% de suas quotas à Blessed pelo valor de R$ 17 mil, quando uma auditoria independente apurou que o montante, na verdade, equivaleria a R$ 970 milhões.
Essa situação, que foi definida pelas instâncias ordinárias como de confusão patrimonial, já estava vigente quando a empresa química Basf ajuizou execução para cobrar dívida da Xinguleder Couros, empresa que fora adquirida pela Bracol.
O andamento da execução levou ao pedido de desconsideração da personalidade jurídica da Bracol, com a consequente inclusão, no polo passivo da ação de execução, de diversas empresas que compõem o Grupo Bertin, incluindo o Pinheiros Fundo de Investimento.
As instâncias ordinárias entenderam que a medida seria cabível porque, apesar de a Bracol não ser a única cotista do fundo de investimento, haveria ali um vínculo empresarial típico das pessoas participantes de um mesmo grupo econômico, em situação de confusão patrimonial.
Ao STJ, o fundo de investimentos defendeu que não estavam presentes todos os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica.
Requisitos presentes
Relator, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva explicou que o patrimônio gerido pelo fundo de investimentos pertence, em condomínio, a todos os investidores. Isso impede a responsabilização do fundo por dívida de um único cotista.
Assim, em tese, o bloqueio judicial não poderia recair sobre todo o patrimônio comum do fundo de investimento por causa de dívidas de um só cotista.
No entanto, ele destacou que todas essas regras devem ceder quando houver a comprovação de que a constituição do fundo de investimento se deu de forma fraudulenta, para ocultar patrimônio de empresas pertencentes a um mesmo grupo econômico.
Como as instâncias ordinárias concluíram que as empresas cotistas do fundo de investimento agiram com desvio de finalidade e confusão patrimonial, visando à ocultação do seu verdadeiro patrimônio, com o intuito de prejudicar credores, está justificada a desconsideração da personalidade jurídica.
“Isso, portanto, é o quanto basta para se concluir que o ato de constrição judicial, ao contrário do que afirma o recorrente, não atingiu o patrimônio de terceiros, mas apenas de empresas pertencentes ao mesmo conglomerado econômico”, concluiu o relator, acompanhado à unanimidade na 3ª Turma.
Ementa do acórdão:
“RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. IMPUGNAÇÃO À EXECUÇÃO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. PRODUÇÃO DE PROVAS. NECESSIDADE. REEXAME DE PROVA. SÚMULA Nº 7/STJ. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. PEDIDO E DECISÃO JUDICIAL ANTERIOR. EXISTÊNCIA. REGULARIDADE FORMAL. FUNDO DE INVESTIMENTO EM PARTICIPAÇÕES (FIP). NATUREZA JURÍDICA. CONDOMÍNIO ESPECIAL. COTAS. CONSTRIÇÃO JUDICIAL. POSSIBILIDADE.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
2. Cinge-se a controvérsia a definir: a) se houve negativa de prestação jurisdicional; b) se houve cerceamento de defesa em virtude do indeferimento do pedido de produção de provas; c) se um fundo de investimento pode sofrer os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica e d) se estão presentes, na espécie, os pressupostos necessários para a aplicação do referido instituto.
3. Não há falar em negativa de prestação jurisdicional se o tribunal de origem motiva adequadamente sua decisão, solucionando a controvérsia com a aplicação do direito que entende cabível à hipótese, apenas não no sentido pretendido pela parte.
4. Modificar a conclusão do Tribunal de origem, soberano quanto à análise da necessidade ou não de se produzir outras provas além daquelas já produzidas, demandaria o reexame do contexto fático-probatório dos autos, providência vedada em recurso especial tendo em vista o óbice da Súmula nº 7/STJ.
5. As normas aplicáveis aos fundos de investimento dispõem expressamente que eles são constituídos sob a forma de condomínio, mas nem todos os dispositivos legais que disciplinam os condomínios são indistintamente aplicáveis aos fundos de investimento, sujeitos a regramento específico ditado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
6. Embora destituídos de personalidade jurídica, aos fundos de investimento são imputados direitos e deveres, tanto em suas relações internas quanto externas, e, não obstante exercerem suas atividades por intermédio de seu administrador/gestor, os fundos de investimento podem ser titular, em nome próprio, de direitos e obrigações.
7. O patrimônio gerido pelo Fundo de Investimento em Participações (FIP) pertence, em condomínio, a todos os investidores (cotistas), a impedir a responsabilização do fundo por dívida de um único cotista, de modo que,
em tese, não poderia a constrição judicial recair sobre todo o patrimônio comum do fundo de investimento por dívidas de um só cotista, ressalvada a penhora da sua cota-parte.
8. A impossibilidade de responsabilização do fundo por dívidas de um único cotista, de obrigatória observância em circunstâncias normais, deve ceder diante da comprovação inequívoca de que a própria constituição do fundo de investimento se deu de forma fraudulenta, como forma de encobrir ilegalidades e ocultar o patrimônio de empresas pertencentes a um mesmo grupo econômico.
9. Comprovado o abuso de direito, caracterizado pelo desvio de finalidade (ato intencional dos sócios com intuito de fraudar terceiros), e/ou confusão patrimonial, é possível desconsiderar a personalidade jurídica de uma empresa para atingir o patrimônio de outras pertencentes ao mesmo grupo econômico.
10. Hipótese em que a desconsideração inversa da personalidade jurídica foi determinada com base em desvio de finalidade e confusão patrimonial, não constituindo o recurso especial a via processual adequada para modificar as conclusões do acórdão recorrido, obtidas a partir da análise da documentação juntada aos autos. Incidência da Súmula nº 7/STJ.
11. No momento da constrição determinada pelo juízo da execução, como consequência da desconsideração inversa da personalidade jurídica do devedor, o fundo de investimento que teve o seu patrimônio constrito possuía apenas dois cotistas, ambos integrantes do mesmo conglomerado econômico, a revelar que o ato de constrição judicial não atingiu o
patrimônio de terceiros.
12. Recurso especial parcialmente conhecido e não provido.”
Processo: REsp n. 1.965.982
Fonte: Consultor Jurídico (vinculado no site www.conjur.com.br).