A Quinta Turma do Tribunal Superior do Trabalho decidiu encaminhar ao Pleno a discussão sobre a constitucionalidade do artigo 223-G, parágrafo 1º, da CLT, que prevê a tarifação das indenizações por danos extrapatrimoniais (ou morais) com base no salário contratual do empregado. De acordo com a Constituição Federal, a inconstitucionalidade de lei só pode ser declarada pelo voto da maioria absoluta dos membros do tribunal ou do respectivo órgão especial.
Critérios gerais
O artigo 223-G, incluído na CLT pela Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017), prevê critérios gerais de apuração dos danos extrapatrimoniais, entre eles a tarifação da indenização. O parágrafo 1º do artigo dispõe que a reparação deverá variar de três a 50 vezes o último salário contratual do ofendido, com base na gravidade da ofensa (leve, média, grave ou gravíssima.
Acidente no Manhattan
O processo que deu origem ao questionamento sobre a constitucionalidade do dispositivo é uma ação ajuizada por um servente de pedreiro. Ele trabalhava na construção de um edifício, em Pará de Minas (MG), e, em março de 2020, caiu de uma escada, quando carregava uma lata com massa de cimento, e bateu com as costas na quina do degrau.
A empresa incorporadora foi condenada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG) a pagar indenização de R$ 10 mil. Ao excluir a possibilidade de usar a tarifação da CLT para definir o valor, o TRT registrou que os dispositivos haviam sido declarados inconstitucionais pelo seu tribunal pleno.
A empresa, então, recorreu ao TST requerendo a aplicação da regra.
Precificação da dor
Na avaliação do relator do recurso, ministro Breno Medeiros, a nova sistemática de tarifação restringe a compensação a um critério quantitativo que, atribuindo ao dano moral gradações equivalentes a múltiplos do último salário contratual, viola o princípio da restituição integral. Segundo ele, esse critério precifica a dor moral da vítima de acordo com seu nível salarial, e não com a estrita extensão do dano. Essa abordagem, a seu ver, é anti-isonômica e está em rota de colisão com os direitos fundamentais expressos no artigo 5º da Constituição.
Compensação razoável
Em seu voto, o relator salientou que a restituição do dano moral pressupõe uma compensação razoável da dignidade aviltada. Isso só é possível em estrita observância à extensão e à gravidade do dano, “que não se mede por faixas salariais”.
Paradoxo legislativo
Para facilitar a compreensão do paradoxo legislativo, o ministro deu o exemplo de um acidente de trabalho gravíssimo, com morte do empregado e culpa comprovada da empresa. Se o último salário contratual da vítima fosse equivalente ao mínimo legal, a indenização máxima prevista na CLT seria algo em torno de R$ 60 mil. “Não há como deixar de observar tamanha incompatibilidade entre o valor irrisório que opera como teto legislativo e a real extensão de um dano moral que se instala com a morte de um trabalhador, em evento cuja culpa patronal esteja estabelecida judicialmente”, ressaltou.
Por unanimidade, seguindo a fundamentação do ministro Breno Medeiros, a Quinta Turma decidiu acolher o incidente de arguição de inconstitucionalidade e determinou o encaminhamento do processo ao Tribunal Pleno.
Ementa do acórdão:
“INCIDENTE DE ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 223-G, § 1º, DA CLT. REGÊNCIA DOS ARTS. 274 E SEGUINTES DO REGIMENTO INTERNO DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. DANOS EXTRAPATRIMONIAIS. PREVISÃO DE TARIFAÇÃO LEGAL POR MÚLTIPLOS DO SALÁRIO CONTRATUAL. CRITÉRIO ANTI-ISONÔMICO. VULNERAÇÃO DO PRINCÍPIO INDENITÁRIO DA RESTITUTIO IN INTEGRUM. DESPROPORCIONALIDADE ENTRE O DANO CONCRETO E A COMPENSAÇÃO TARIFADA. VIOLAÇÃO DO ART. 5º, CAPUT E INCISOS “V” E “X” DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. A Consolidação das Leis do Trabalho, alterada pela Lei nº 13.467/2017, incluiu o art. 223-G, que prevê critérios gerais de apuração dos danos extrapatrimoniais, entre os quais sobressai a tarifação legal da indenização, nos termos do § 1º, que dispõe que: “§ 1o Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação: I – ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual do ofendido; II – ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do ofendido; III – ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do ofendido; IV – ofensa de natureza gravíssima, até cinquenta vezes o último salário contratual do ofendido.” A nova sistemática de tarifação legal do valor dos danos extrapatrimoniais na Justiça do Trabalho restringe a apuração da compensação a um critério quantitativo que, atribuindo ao dano moral gradações equivalentes a múltiplos do último salário contratual, viola o princípio indenitário da restitutio in integrum, o qual foi recepcionado pelo ordenamento constitucional, que prevê como direito fundamental, em seu art. 5º, inciso V, que “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”. Por outro lado, o inciso X do citado art. 5º da Constituição também prevê que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Percebe-se, portanto, que a tarifação legal promovida pelo citado dispositivo do art. 223-G, § 1º, da CLT ofende a integridade do princípio indenitário de restituição integral ancorado constitucionalmente, pois precifica a dor moral do sujeito passivo do dano, em linha com o seu nível salarial, e não com a estrita extensão do dano aferido em juízo. Ao assim proceder, contudo, o legislador inscreveu a norma infraconstitucional em rota de colisão com os direitos fundamentais em exame, fazendo incidir na espécie a previsão contida no art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal, que veda, expressamente, inclusive por meio de proposta de emenda à Constituição, a iniciativa do Poder Legislativo tendente a turbar cláusula pétrea do sistema constitucional de direitos. Criar parâmetros estáticos de indenização, que
relacionam o valor da compensação com o salário da vítima, cria no sistema indenitário brasileiro uma abordagem compensatória anti-isonômica que fere frontalmente o caput do próprio art. 5º da Constituição, já que equaliza o valor da reparação por níveis sócio-econômicos que não revelam a igualdade política entre os sujeitos afetados pela norma. Há, nesse caso, uma quebra da dimensão de imparcialidade do processo legislativo, cuja premissa de igualdade se assenta na tradição filosófica do imperativo categórico kantiano, segundo o qual a aceitabilidade geral da norma pressupõe condições igualitárias de aferição do interesse geral envolvido pela previsão legislativa. Não parece mesmo razoável pressupor que uma lei que cria um preceito fundado em um corte social arbitrário, que separa a dignidade a ser compensada, por critérios estratificados pela projeção econômica do último salário contratual, possa ser considerada equitativa, em termos constitucionais. Como se sabe, a dimensão normativa da restituição do dano moral perpetrado contra o trabalhador pressupõe uma compensação razoável da dignidade aviltada com a conduta do agente do dano. Isso, por sua vez, só se torna possível quando há a possibilidade de arbitramento da indenização em estrita observância à extensão e gravidade do dano, o que não se mede por faixas salariais, senão pela concreta proporcionalidade entre o agravo e a indenização conferida. Essa relação de proporcionalidade, como se pode perceber, emerge do próprio caso, e se projeta fundamentadamente pelo discurso de aplicação da norma, que justifica sua adequação por meio do tratamento integral da dimensão situacional do processo em apreciação, revelando-se, pelos fundamentos decisórios, a real correlação entre a resposta judicial e os critérios estabelecidos pelos citados incisos V e X do art. 5º da Constituição Federal. Para se visualizar o paradoxo legislativo criado, basta imaginar um caso concreto de acidente do trabalho gravíssimo, com morte do empregado e culpa comprovada da empresa. Em um caso como esse, se o último salário contratual da vítima for equivalente ao mínimo legal, o máximo que a legislação permitiria arbitrar a título de indenização por danos morais seria algo em torno de R$ 60.600,00 (sessenta mil e seiscentos reais), tendo-se como base 50 vezes o salário mínimo vigente hoje (R$ 1.212,00 – hum mil e duzentos e doze reais). Não há como deixar de observar tamanha incompatibilidade entre o valor irrisório que opera como teto legislativo e a real extensão de um dano moral que se instala com a morte de um trabalhador, em evento cuja culpa patronal esteja estabelecida judicialmente. O certo é que, não apenas no exemplo hipotético acima formulado, mas sempre, na dinâmica forense é a projeção fundamentada da extensão do dano aferido em juízo, e não a projeção econômica do salário contratual do empregado, que revela o princípio de proporcionalidade da indenização arbitrada, o que é basilar na tarefa jurisprudencial de sopesamento dos valores aptos à compensação dos direitos da personalidade lesados por outrem em uma relação de trabalho. Tendo sido demonstrada a potencial inconstitucionalidade do art. 223-G, § 1º, da CLT, é de se acolher a presente arguição de inconstitucionalidade suscitada pelo relator, tornando-o prevento para o processamento do feito, nos termos do art. 277, caput, do RITST, com consequente determinação de encaminhamento do processo ao Tribunal Pleno, para regular processamento do incidente instaurado, tudo nos termos do art. 275, § 3º, do RITST. Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade acolhido, com determinação de remessa dos autos ao Tribunal Pleno.”