Finalidade nobre de quem viola direito autoral não exclui danos moral e material

O uso de obra intelectual sem autorização do seu criador produz danos material e moral, simultaneamente, ainda que a utilização tenha finalidade nobre.

Com este entendimento, a Justiça condenou a Prefeitura de Itanhaém, no litoral de São Paulo, por empregar em uma campanha educativa de trânsito a personagem Bigail, de autoria do jornalista e ilustrador Sérgio Ribeiro Lemos, o Seri. Após duas décadas do ajuizamento da ação, ele recebeu os valores fixados no acórdão. O pagamento foi por meio de precatório.

A ação foi distribuída em 2002, sendo julgada procedente pelo juiz Enoque Cartaxo de Souza, da 3ª Vara Judicial de Itanhaém, em 20 de setembro de 2005. As partes recorreram e a 10ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) julgou as apelações em 2010, dando provimento parcial ao recurso da Prefeitura de Itanhaém apenas para reduzir o valor da indenização por dano moral de R$ 15 mil para R$ 5 mil. O colegiado manteve a quantia de R$ 15 mil a ser paga a título de dano material.

O acórdão cita o artigo 5º, inciso XXVII, da Constituição Federal (“aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”) e o artigo 22, da Lei 9.610/1998 (“pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou”). O julgado também faz referência à responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito público pelos danos que os seus agentes causarem a terceiros (artigo 37, parágrafo 6º, da CF).

Relator dos recursos, o desembargador Antônio Carlos Villen destacou que a redução da quantia a ser paga por dano moral “preserva as finalidades compensatória e dissuasória da indenização, sem implicar enriquecimento sem causa do autor”. O julgador justificou a diminuição ao fato de Bigail não ter sido “modificada ou desprestigiada” no uso desautorizado feito pela Administração municipal. “Ao contrário, seu emprego em campanha educativa de trânsito tende a fazer aumentar o seu prestígio e popularidade”.

A partir da publicação do acórdão, o advogado Julio Caio Calejon Stumpf, que representa o ilustrador, enfrentou uma maratona ainda mais demorada. O ofício requisitório do precatório só foi expedido em 2015, sendo o pagamento efetivado pela Prefeitura de Itanhaém apenas no mês passado. Os valores arbitrados a título de danos material e moral foram corrigidos monetariamente, com acréscimo de juros legais, desde a data da citação, conforme determinou a sentença.

A administração também arcou com as despesas e custas processuais, além dos honorários advocatícios, fixados em 10% do valor da condenação. Em suas razões recursais, a Prefeitura de Itanhaém pediu o afastamento do dano moral. Em relação ao montante de reparação pelo dano material, ela requereu a redução para R$ 1.800,00, sob o argumento de que a sua campanha educativa foi de pequena dimensão e não houve trabalho por parte do autor para a sua implantação.

Desvirtuamento

A alegação da ré em sua contestação para negar a ocorrência de dano moral foi a de que a sua campanha não teve fins lucrativos e não ofendeu ou denegriu a honra do autor. “É evidente que o autor sofreu violação moral ao descobrir que sua criação artística e premiada estava sendo usada sem a sua permissão, ainda que se considere que a causa era nobre, ou seja, a educação no trânsito que certamente salvaria muitas vidas”, ressalvou o juiz Enoque.

O magistrado acrescentou que o direito do ilustrador em ser indenizado não decorre de eventual lesão à sua moral, o que efetivamente não aconteceu, mas pelo fato de sua criação ter sido usada sem o seu conhecimento e consentimento. Em primeira e segunda instâncias, o mérito da ação se demonstrou incontroverso, porque a Administração Pública admitiu a utilização da personagem Bigail sem autorização do autor, bem como não restou dúvida de que Seri é o seu criador.

Bigail foi criada em 1984 e protagonizou quadrinhos de jornais. Das páginas dos diários, após ter o seu uso licenciado por Seri, ela estrelou a campanha publicitária de uma rede de drogarias e programas educativos da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) de Santos. Em dezembro de 2001, o ilustrador soube que a Prefeitura de Itanhaém utilizou a sua personagem, sem qualquer menção de crédito, em campanha de trânsito para ciclistas por meio de um jornal diário e da distribuição de 30 mil panfletos.

Ser indenizado após duas décadas é motivo de comemoração para o ilustrador, mas não pela quantia recebida em si. “A maior vitória, que não é só minha, é o reconhecimento da questão do direito autoral, que na época dos fatos não era tão discutida. Até fiquei resignado quanto ao tempo que ia ter que esperar para fazer valer com plenitude o meu direito, porque neste caso a questão ainda envolvia precatório. A gente sabe que demora mesmo e muitas vezes são os filhos ou os netos que recebem a indenização.”

De acordo com Seri, o importante é que haja consciência de que o uso indevido da produção intelectual alheia viola o direito autoral e gera responsabilidade por danos morais e materiais. “Diariamente obras são acessadas, principalmente na internet, e utilizadas sem a autorização dos seus autores. Quem tiver a sua obra vilipendiada, que busque os seus direitos. Que a minha vitória seja representativa e sirva de incentivo aos lesados. Não podemos deixar que situações nocivas se normalizem.”

Processo 
0002184-39.2002.8.26.0266 (TJSP).


Fonte: Consultor Jurídico (vinculado no site www.conjur.com.br)

Compartilhar

plugins premium WordPress
Procurar